Uma lacuna deixada pelo governo Lula (PT) em mudanças feitas nas carreiras do Executivo põe em risco os trabalhos da reforma agrária no Brasil.
A medida provisória nº 1.286 foi publicada no último dia de 2024 para reestruturar o organograma de uma série de cargos do funcionalismo público federal. Na prática, criou um vácuo dentro do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e uma sobreposição em suas funções.
A medida revoga as atribuições de vistoria, avaliação e perícia de imóveis rurais e de pronunciamento técnico, etapas preparatórias para a destinação de terras e que servem para aferir o cumprimento ou descumprimento da função social da propriedade.
A redação da proposta não realoca tais tarefas para nenhum outro lugar e diz apenas que as funções da nova carreira serão definidas em regulamentação.
A Folha conversou, sob reserva, com cinco pessoas do Ministério do Desenvolvimento Agrário, do Incra ou que atuam em funções relacionadas ao tema. Todas concordam que, sem essa previsão expressa no texto da lei, o trabalho do órgão perde respaldo legal, fica sujeito a questionamento na Justiça e mais vulnerável a violência e ataques no campo.
O conjunto das mudanças, segundo elas, esvazia o órgão e cria insegurança jurídica, ao rebaixar atribuições à regulamentação, desvincular funções e criar uma disputa entre carreiras pelas mesmas atividades.
Nos bastidores, servidores se mobilizam para tentar reverter as mudanças ou ajustá-las na tramitação pelo Congresso Nacional.
Integrantes do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do Incra afirmam que foram surpreendidos pela revogação promovida pelo Ministério da Gestão e que souberam dela apenas na publicação da medida provisória, e não nos debates que a precederam.
"[Foi deixado um] vácuo normativo quanto às atribuições [...] comprometendo a ações de regularização fundiária e o programa de reforma agrária", afirma em nota enviada ao Congresso a Condsef (Confederação dos Trabalhadores do Serviço Público Federal).
Questionado pela reportagem, o Ministério da Gestão afirmou que todas as alterações foram feitas por acordo.
"O novo cargo da carreira foi criado com atribuições mais genéricas com o propósito de abranger outras especialidades e formações", afirmou a pasta.
Já o Incra disse que o atual governo retomou as atividades de vistoria, já que o departamento responsável havia sido extinto em 2019, pela gestão Jair Bolsonaro (PL). Desde então, entre 2023 e 2024, foram realizadas 262 atividades desse tipo.
"O Incra está analisando a existência de uma possível sobreposição. De qualquer forma, os trabalhos de vistoria seguem acontecendo normalmente", afirmou o Incra.
Uma das principais bandeiras dos primeiros governos de Lula, a reforma agrária se tornou uma encruzilhada para o petista, que se vê entre a pressão de movimentos sociais e do agronegócio.
O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra) realiza até o próximo dia 17 o Abril Vermelho, uma jornada de invasões. O movimento afirma que o passivo de famílias à espera de um assentamento aumentou da casa dos 60 mil no início de 2023 para mais de 100 mil em 2025.
Já o governo afirma que teve que reconstruir a política agrária e promete que vai alocar 326 mil famílias até o fim da atual gestão.
"Após [os governos] Dilma [Rousseff], Michel Temer e [Jair] Bolsonaro nada fizeram pela reforma agrária. Agora, retomamos os patamares dos governos Lula 1 e Lula 2, que são os melhores", disse o ministro Paulo Teixeira, à Folha, no início de abril.
A bancada ruralista, por outro lado, ameaça retaliar o movimento e o governo, também neste mês, avançando com a pauta anti-MST no Congresso e revertendo atos de Lula sobre a política agrária.
A medida provisória publicada no final de 2024 pelo governo Lula cria, dentre outros itens, uma nova carreira no funcionalismo público, a de perito federal territorial, para substituir a de perito federal agrário.
Neste processo, ela revoga um artigo inteiro das previsões legais dessa atuação, justamente o que previa a realização de atividades fundamentais para a regularização fundiária.
Dentre elas, "a vistoria, avaliação e perícia de imóveis rurais, com vistas na verificação do cumprimento da função social da propriedade, indenização de imóveis rurais e defesa técnica em processos administrativos e judiciais referentes à obtenção de imóveis rurais".
Também desapareceram as atribuições de emitir avaliações sobre alienação ou "viabilidade técnica, econômica e ambiental" para alienação ou obtenção de terras em prol da reforma agrária ou da regularização fundiária.
É por meio dessas atividades, dizem técnicos da área, que são identificadas terras irregulares ou não produtivas e que poderiam ser destinadas a assentamentos, por exemplo.
Sem essa previsão, dizem, os servidores do Incra até poderiam seguir com as atividades, mas sem respaldo legal, o que sujeita todo o processo a ser questionado e derrubado facilmente na Justiça.
Nos bastidores, também há uma disputa entre carreiras no Incra —os agora peritos territoriais tentam ganhar espaço e ampliar sua remuneração dentro do funcionalismo público.
Reflexo disso é que esse novo cargo acumulou também funções de coordenação, planejamento, implementação e orientação da governança territorial, o que já era atribuição de outras cadeiras do órgão.
Segundo a Condsef, há um "sombreamento" das atribuições. "Tal situação não só prejudica a distribuição eficiente do trabalho dentro do Incra, mas também gera conflito entre servidores e compromete a qualidade das análises técnicas", afirma a confederação.
Enquanto a antiga carreira era diretamente ligada ao Incra, a medida provisória desvinculou o perito territorial do órgão, o que possibilita que seus servidores tenham mais espaço dentro do funcionalismo e possam realizar suas funções em outras áreas.