O ponteiro avança acelerado, correndo todo o círculo em frente as letras que formam ali as palavras "passa tempo", ou só "passatempo", no lugar dos números. O duplo sentido na obra de Rochelle Costi, artista que morreu atropelada em São Paulo três anos atrás, ganha ares mais perversos numa cidade que também se viu mergulhada em tragédia em questão de instantes.
Esse relógio às avessas instalado na fachada do Museu do Trabalho, em Porto Alegre, lugar que ficou debaixo d’água nas enchentes do ano passado, ilustra bem a ideia que rege esta Bienal do Mercosul, recém-aberta na capital gaúcha depois de quase um ano de atraso por causa das chuvas que mataram dezenas de pessoas e destruíram boa parte da cidade —entre as vítimas, também os acervos de alguns de seus museus.
O clima, num calor tórrido em pleno outono, é de reconstrução, a luta contra um ambiente hostil causado em grande parte por nossos excessos. Na visão de Raphael Fonseca, que comanda esta edição de uma das mostras mais tradicionais do calendário latino-americano, estamos à beira do abismo, em ponto de ebulição. "Estalo", não por acaso, é o nome da exposição. Tudo está por um triz e pode vir abaixo num estalar de dedos, na velocidade de uma faísca.
É bem elástica a metáfora, a ideia tanto de colapso repentino quanto de ponto de virada para uma reinvenção. E os trabalhos, eletrizados por uma fome de mudança, parecem atravessados por ideias que correm trilhos em paralelo, a busca por uma identidade forjada num mundo em chamas, a reação à catástrofe, um retorno à essência da imagem hoje raptada pelo jogo de espelhos e as ilusões da era da inteligência artificial.
No fundo, estamos diante de sonhos que são também pesadelos. Espalhados por cerca de 20 espaços, os quase 80 artistas da mostra, em grande maioria do chamado sul global, dizem isso com um frescor assustador, distantes da cartilha panfletária que varre o mundo "artsy" e seus delírios "woke" e mais íntimos de uma poética própria calcada na metamorfose de corpos dissonantes, vítimas e ao mesmo tempo agentes de transformação num lodaçal apocalíptico.
Zé Carlos Garcia, numa série de esculturas no átrio da Fundação Iberê Camargo, mostra braços, mãos e rostos que surgem de troncos e galhos secos, mutantes nascidos de escombros. Eles gritam diante de uma tela do artista que dá nome ao museu, monumental autor do desgosto, a tragédia encarnada em tinta, como fantasmas que vagam sem fôlego, idiotas que são todos eles. Os desenhos de crânios do mesmo Iberê Camargo, frios estudos anatômicos, são as testemunhas desse "big bang" talhado em madeira, mais ossos do que carne.
Noutro lado do espectro, Maya Weishof constrói orgias carnavalescas em suas pinturas, encontros de corpos que parecem se regenerar no calor do sexo, a fricção da pele com a pele. São estalos de tesão que transbordam das telas em grande escala e roçam as esculturas de Darks Miranda na sala ao lado, vulcões cheios de olhos e dedos, monstros marinhos que conversam com a fauna terrestre fantástica da paraguaia Julia Isidrez, autora de um bestiário de argila que vem conquistando a cena mundial.
Nós e eles, homens reais e criaturas híbridas, pisamos a mesma terra nessa mostra, um mundo em dissolução que se reinventa inteiro, de um solitário grão de areia, como no canteiro de terra vazio em que o chão parece respirar, obra do indiano Amol Patil, no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, às formas mais grotescas com requintes de "body horror".
Num filme no Farol Santander, Vitória Cribb mostra a transformação de uma mulher em lagarto e vice-versa, uma animação hiper-realista em que pele, escamas, olhos esbugalhados e dentes afiados habitam o mesmo corpo no banheiro asséptico de uma casa minimalista —novas espécies de um admirável mundo novo.
São híbridos também os humanoides da mexicana Berenice Olmedo, manequins translúcidos de resina cor-de-rosa que se equilibram sobre pernas-pedestais de aço inoxidável, corpos que são também máquinas assustadoras.
Inventor de outra máquina, o sul-coreano Yunchul Kim transforma pedras em luz. Sua instalação de vidro e metal, uma constelação de aquários de formato orgânico que bombeiam um líquido fluorescente multicolorido, usa minerais como base para criar, dentro dessa casca transparente em que luz e temperatura são controladas com total rigor, uma visão fluida, metálica dos minerais que sustentam o chão debaixo de nossos pés.
Esse é um chão, aliás, cada vez mais abstrato e estéril. As enormes pinturas de Marina Rheingantz mostradas ao lado das máquinas de Kim são paisagens esvaziadas, grandes descampados de tons mais rebaixados marcados por lampejos isolados de cor, como se fossem fagulhas de brasa dormida.
Todos já se foram desse terreno abandonado. As imagens da artista são tanto terra quanto céu, ou mar invertido, a planície imensa onde nada sobrevive, um palco sem luzes ou atores. Essa ideia de um lugar devastado, de espetáculo sem estrelas num mundo que parece ter expurgado todas elas, marca quase todos os trabalhos na Usina do Gasômetro, outro espaço cultural renascido da destruição em Porto Alegre.
É ali que a americana Nikita Gale constrói as ruínas de um palco, suas estruturas metálicas tortas e empilhadas no chão iluminadas por refletores fora de órbita, jogados pelos cantos, ao som de "Private Dancer", a canção célebre na voz de Tina Turner.
Mas não há dançarinos ali, da mesma forma que os atores saem de cena nas fotografias do americano Paul Mpagi Sepuya. Nas suas obras, o artista inverte a lógica do retrato. Vemos mais o aparato técnico, os refletores, os tripés, os fundos infinitos do que os personagens da cena, sempre homens nus que parecem fugir do enquadramento, corpos que repelem a invasão da lente, o olhar do voyeur.
Também está deserto o ambiente decorado construído por Marcus Deusdedit, que vira do avesso a ideia de máquina de morar do modernismo de Le Corbusier para inventar uma verdadeira máquina de matar. A porta é uma guilhotina, a espreguiçadeira é uma cama de facões, o espelho despenca e se estilhaça sobre quem tenta ver seu reflexo.
O artista leva ao interior burguês, numa sátira às modas que povoam casas de colecionadores de arte, aquilo presente no mobiliário urbano de todas as cidades modernas, a arquitetura hostil contra os despossuídos. É o que ele chama de "Ouvindo Muito Trap Enquanto Faço Interiores", um lar para ninguém alicerçado em todos os rachas que atravessam nossa sociedade movida a estalos.